
O diretor do maior centro de referência em tratamento de
coronavírus no Estado da Bahia, o infectologista Roberto Badaró afirmou ontem
que 40% dos óbitos registrados no Hospital Espanhol como covid-19 são
decorrentes de outras enfermidades. Após seis anos fechado, o Espanhol foi
reaberto pelo Governo da Bahia em abril como unidade exclusiva de tratamento do
novo coronavírus, com 220 leitos, 140 deles de UTI, num investimento de R$ 8
milhões.
"Eu vou dar um exemplo simples: no Hospital Espanhol,
40% dos pacientes que eu recebo não têm covid. E morrem. E no atestado de óbito
tá lá: covid. Porque tem três campos no atestado de óbito. Ele vem com suspeita
de covid, então entra na estatística. É preciso que se veja isso com bastante
critério".
A declaração foi feita durante entrevista ao vivo na Rádio
Metrópole FM ontem. Badaró respondia a uma pergunta feita pelo apresentador
Mário Kertész sobre os motivos que faziam os registros de casos de coronavírus
no Brasil serem cinco vezes maiores que os da Índia, país que tem população
quase sete vezes maior que a brasileira. "E do que morrem estas
pessoas?", questionou Kertész. "Do que já morreram sempre. De AVC,
doença cardiovascular, diabetes", respondeu.
Após a publicação desta matéria, a Secretaria de Saúde da
Bahia (Sesab) publicou nota oficial em seu site, na qual Badaró mudou sua
versão e disse que a afirmação feita na rádio Metrópole não corresponde à
realidade. "Venho a público dizer que a forma como expressei-me não
reflete corretamente o que acontece no Hospital Espanhol", disse.
"Não é correto afirmar que óbitos são lançados
indevidamente como Covid-19. Em verdade, todos os óbitos ocorridos no Hospital
Espanhol são avalizados pela coordenação médica. Se o óbito ocorre é obrigação
da unidade hospitalar que emite a Declaração de Óbito (DO), colocar a causa
corrigida e não continuar com a suspeita diagnóstica da chegada", afirmou
o diretor.
De acordo com ele, o procedimento adotado pelo hospital pode
ser corrigido posteriormente pelas autoridades e que as mortes suspeitas não
são incluídas nos números da Sesab. "Na eventualidade de um óbito ocorrer
antes do resultado laboratorial, a DO sairá como "suspeita de
Covid-19" e pode ser corrigida postmortem pela autoridade sanitária
estadual. Neste cenário, cabe registrar que a Vigilância Epidemiológica, de
modo assertivo, só contabiliza as declarações de óbito classificadas como casos
suspeitos de coronavírus após investigação e/ou resultado laboratorial
confirmatório", justificou.
Pedido de famílias
Também na entrevista à Rádio Metrópole, o pesquisador-chefe
do Instituto de Tecnologia da Saúde do Senai Cimatec e integrante do Comitê de
Governadores e Especialistas do Nordeste contra o Coronavírus afirmou que o
diagnóstico para covid-19 tem sido utilizado como alternativa por parte de
familiares de pacientes de outras enfermidades para encontrar vagas de UTI.
O infectologista chegou a citar o exemplo de uma mulher
diabética cujo índice glicêmico era superior a 1.000, mas que a família apelou
a ele por uma vaga na UTI dos Espanhol porque a irmã dela teria contraído
coronavírus. "Ela estava com cetoacidose diabética, ela aí fez uma
falência respiratória e intubou. Isso é covid? Não é. Mas para poder ter acesso
a uma UTI, bota lá covid e vai pro hospital".
"Então eu tenho muita dificuldade, tô sendo bastante
honesto, de entender esses dados de mortalidade, se eles são puros, só de
covid. Quando o doente não tem covid ele chega a uma UPA e é deixado para trás.
Vai ser atendido depois, se não for suspeita direta de caso de dificuldade
respiratória", acrescentou.
Posteriormente, na mesma nota divulgada pela Sesab, Badaró
elogiou o trabalho dos profissionais de saúde e a ação do governo estadual.
"Quero reiterar o meu respeito pelo trabalho primoroso que vem sendo
conduzido pelo Governo do Estado para abrir vagas de UTI em todo o Estado.
Igualmente reconheço o esforço dos profissionais da Central de Regulação, que
vêm trabalhando junto às UPAs e regulando pacientes para os hospitais em tempo
recorde, evitando que ocorram mortes por falta de assistência adequada",
disse.
Badaró afirmou que os pacientes precisam ser atendidos,
mesmo que não tenham o diagnóstico confirmado para covid-19. "Nem todos os
pacientes internados nos hospitais terão o resultado do RTPCR confirmado antes
da admissão. Assim sendo, uma parcela dos pacientes internados permanecerá sem
confirmação diagnóstica até o recebimento do resultado do Laboratório Central
de Saúde Pública (Lacen-BA). Cabe ao hospital de referência, que recebe os
pacientes suspeitos, investigar para tratar e encaminhar adequadamente o
caso".
Repercussão
Para o médico urologista Modesto Jacobino, as declarações de
Badaró são graves e precisam ser apuradas. Ele observa que os médicos que fazem
declaração falsa para encobrir a verdadeira causa da morte cometem crime de
falsidade ideológica, que além das penalidades previstas no artigo 229 do
código penal, podem levar à cassação do registro profissional.
"Badaró não falou de 1% ou 2%, ele falou em 40%. Isso
representa um grande contingente de famílias estigmatizadas por uma doença que
não permite o direito de visitar seus entes queridos no hospital, de velar seus
corpos num funeral comum e nem mesmo de receber o valor do seguro de vida, que
as seguradoras se negam a pagar por se tratar de uma pandemia. É uma situação
que tem consequências muito drásticas para as famílias das vítimas, um caso de
polícia", pontuou.
Jacobino ingressará amanhã com uma denúncia ao Cremeb
(Conselho Regional de Medicina do Estado da Bahia). Ele entende que o caso
merece ampla investigação, para além da esfera de atuação do Hospital Espanhol,
que apure se existe alguma orientação aos médicos intensivistas na Bahia para
atestar óbitos por coronavírus de forma fraudulenta, a exemplo do que foi
denunciado pelo sindicato dos médicos do Ceará ao Ministério Público.
Isso teria ocorrido com a aposentada Antônia dos Santos, 98,
que morreu em 19 de maio. "Minha avó não estava com febre, não estava
tossindo, tinha uma massa de 7,5 cm de diâmetro no intestino que provocou
sangue nas fezes identificada por um ultrassom e, mesmo assim, a médica queria
declarar que ela tinha falecido por causa de coronavírus", relata a
recepcionista Gabriela Silva, 35. "Foi quase meia hora de discussão com a
nossa família para ela voltar atrás e declarar que a causa da morte foi
insuficiência respiratória aguda".
O médico e vereador Cezar Leite (PRTB) anunciou pelas redes
sociais ter dado entrada no Ministério Público Federal e no Cremeb com
solicitação para investigar a situação do Hospital Espanhol e demais hospitais
de Salvador. "Como vereador, médico e cidadão tenho o dever de fiscalizar
e pedir transparência neste processo. Não podemos esquecer que estamos tratando
de vidas e dinheiro público", destacou.
Aurelio Nunes
Colaboração para o UOL, em Salvador
11/06/2020 19h14Atualizada em 12/06/2020 08h41
0 Comentários